Chamo-me Vida! Nasci sem idade e assim vou permanecer. Tenho um corpo multifacetado e usurpado pelas intempéries das acções…
Sou feita de amor. Amo cada instante, que, por mínimo que seja, prevalece ancorado no cais da minha memória por anos sem fim.
Viajo entre os rostos das quimeras dos sentimentos e absorvo cada gesto, cada paisagem, ou cada prodígio… e assim irei continuar.
Estou em toda a parte, e em parte alguma em especial. Sou uma das essências do Mundo, aconteça o que acontecer… Chamo-me Vida!
Transmuto-me pelos campos da nossa natureza ou numa qualquer selva, e ainda consigo erguer-me num astuto racional.
Abomino a violência, com a mesma clareza que me dou em cada alegoria ou num poema feito de esperança, com a mesma vontade com que me pinto com as cores do mar. Sou um conjunto de mínimos instantes escolhidos com afecto, porque dos outros extraio a dor e devolvo-os ao acaso.
Não os quero para mim… Não me dizem nada!
Tenho veias dentro de mim onde correm as minhas lágrimas de sangue com que bombeio o meu erecto e aprumado querer.
E na carne que protege o meu símbolo, exponho-me à dor, de quem percorre as ruas do destino, desafiando os malogrados deste oculto mundo. E, de tanto ser, consigo penetrar nas ogivas do mal com a mesma cadência de outrora…
Chamo-me Vida em todos os instantes!
Ainda assim, tenho uma consciência equitativa que transmite ondas com traços definidos e catalogados. Da tristeza e da contundente dor, são os instantes que troco pelas deliciosas maravilhas que me brindam e nas lágrimas expresso-me melhor, muito melhor, naquelas que são originadas pela alegria.
Visto-me de sorrisos que guardo como os meus instantes, mínimos instantes, para continuar a ser, porque são eles o meu alimento e o meu tesouro íntimo.
Revejo-me ao pôr-do-sol como um cumpridor da missão infindável.
Chamo-me Vida… Também nos mínimos instantes!
(Paulo Afonso Ramos, in "Entre as margens da memória")
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