quinta-feira, novembro 01, 2012

Crónica do Adeus

                                                  Edição n.º 14 Ano I - Novembro 2012

Crónica do Adeus


Sexta-feira. 19 de Outubro de 2012. Acabara de receber um email a solicitar a crónica para edição de novembro, com a indicação do prazo limite de envio, e ainda mal sabia o que iria escrever. Pouco tempo depois esta sexta-feira (o dia da semana de que menos gosto) ficaria irremediavelmente perdida com a notícia da partida de Manuel António Pina.

Pouco antes, e em sentido contrário, através do Facebook, eu escrevia: “Bom fim de semana para todos os meus amigos!
Sorriam e divirtam-se, porque a vida passa depressa...
Abraços!

Não imaginava que tão triste notícia abrigava, forçosamente, o meu sorriso e roubava um sonho, entre tantos outros, que escondia atrás desta minha paixão literária; conhecer pessoalmente e publicar (um só livro que fosse) Manuel António Pina. Cheguei, timidamente, a segredar a alguém este louco desejo.

Talvez, dentro do meu egoísmo, ainda não tivesse assumido algo mais importante: a literatura portuguesa acabara de sofrer um rude golpe! Mais um...

Assim, entre a perda e a tristeza profunda, decidia o que iria escrever para o jornal de novembro: Uma crónica do adeus.!

Mais que a qualidade da crónica, que a tristeza do momento, queria perpetuar em meu redor um justo e digno adeus. Homenagear. Manuel António Pina fazia-me ficar parado em frente ao televisor. Atento. Gostava das suas entrevistas. Fazia-me ler com prazer. Gostava da sua escrita, em particular, da poesia rendilhada de diferença, e adivinhava um homem excecional na inteligência e saber. Fazia-me, portanto, sonhar com a remota possibilidade de criar uma relação com o próprio, abordando várias temáticas e em especial sobre a paixão comum.

Não aconteceu. Mas agora nada importa. Não importam os seus muitos prémios literários nem os momentos que não aconteceram. Nem tão pouco importam os dispersos acontecimentos após a sua morte, se poucos dias passados ninguém recorda a obra ou o génio. Talvez, por isso, insista nesta crónica do adeus para relembrar, NÃO O SONHO, mas a memória. A memória colectiva que se apaga pela falta dos afectos, dos gestos mais disseminados ou das vontades que ergueram o que nós agora somos. Sem educação e sem cultura nunca viajaremos no tempo nem amaremos os que nos deram tanto e tanto; para muitos, foi sempre um nada fingido de sobressaltos. Devíamos, diariamente, agradecer o que temos. Devíamos compreender a grandeza dos que partiram sem comparações ou atropelos e sem medos.

Obrigado amigo do meu sonho. Um abraço. Com o poema deixo-me ficar em ti.

 

NÃO O SONHO

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.


Manuel António Pina, em Atropelamento e Fuga.

1 comentário:

Paula Raposo disse...

Gostei muito destas tuas palavras ao Poeta, ao Sonho e à Vida! Beijos.